Confortável ate mais que os aviões dessas empresas que nos exploram sob a cumplicidade descarada das autoridades da regulação aérea no Brasil, o ônibus desliza no asfalto enquanto o meu olhar sem certeza de ultima vez deixa escorrer pela janela a mansidão das aguas do rio Moscou.
O amanhecer atira spot na paralisia das arvores às margens da estrada num cenário de quase ninguém e o calor em nada estrangeiro se assemelha ao comum da nossa ilha do amor, um pouco abaixo, talvez um pouco acima dos nossos 30 graus centigrados.
Faltam poucas horas para que os quatro dias e noites passados em Moscou se transmudem em fotografias e vídeos que a memória, filtrando-os aos poucos até a inutilidade final, apagará.
Parece haver disciplina em tudo. Da velocidade respeitando o limite da ordem ditada pelas placas em cada margem da estrada – 60 e não menos, nem mais que isso, à hora marcada para o desembarque final no aeroporto.
O olhar não se assusta com a enormidade da fachada, a grandiloquência arquitetônica como que programada a plantar em meio ao ufa de quem chega, uma primeira impressão boa.
Nisso, quero dizer na propaganda politica, os comunas foram craques. Digo foram, assim no passado, porque na Rússia dos últimos anos não se fala mais em comunismo. Nem Wladimir Putin, catapultado por Iéltsin entre o que havia de mais discreto na elite da KGB, o temível serviço secreto da então União Soviética, quis candidatar-se à continuidade no Kremlin pelo PC preferindo inscrever-se como candidato independente.
Na gangorra do poder com Medvedev, seu conterrâneo de São Petersburgo, Putin cumpre o mandato como Presidente enquanto Medvedev governa como Primeiro Ministro. E vice versa.
Politicamente, Medvedev estaria para Putin, mutatis mutandis, um pouco como Alexandre Costa, mesmo sem o poder estadual, sempre esteve no plano nacional para José Sarney. As mortes do poeta e economista Bandeira Tribuzi e de Alexandre Costa, grande na guerra e maior na paz, teriam infiltrado cupim na estrela politica do nosso bi imortal Presidente, o qual sem aqueles dois nunca mais teria sido o mesmo.
Na chegada à noite a Moscou quase não deu para avaliar o aeroporto como agora à luz do sol pouco antes do meio dia. Na chegada, o cansaço físico da longa viagem pode ter embaçado o interesse maior pelos detalhes, espaços e coisas.
A fachada enorme em horizonte de sinuosidades faz lembrar a quem conhece Brasília um pouco a paixão de Niemayer pelas curvas sensuais no concreto.
Àquela altura, o mais que eu queria era chegar logo ao hotel. Despejar o cansaço numa restauradora taça no restaurante sorvendo um bom vinho de La Rioja, espanhol.
Na manhã seguinte, pude saber quantos éramos, porque e como, afinal, chegáramos ali. Nos países onde atua o cartão de crédito empresarial com o qual o meu escritório de advocacia opera no Brasil houve sorteios entre clientes e assim foram formados grupos para assistirem, com direito a acompanhante e tudo 0800, aos jogos da Copa do Mundo na Rússia. Nada a ver com a CBF. Nem com a FIFA.
Para a finalíssima que acabou sendo disputada entre Croácia e França coube ao Brasil um grupo de 10 sorteados. O Brasil fora. Por quem torcer? Como diria o Major Tom, do poema de Bowie - a terra é azul e não há nada que eu possa fazer. A França na Rússia estava inteiramente azul. Viva la France!
E eu que não compro bilhete de rifa ou de loteria, que não entro em sorteio nem mesmo naqueles do cupom nos shoppings para ganhar carro zero no dia das mães, enfim, eu que não arrisco nada renunciando a todo jogo para não gastar a minha sorte, eu que nem sabia desse sorteio porque, afora ser apenas um dentre milhões de clientes de um cartão de crédito no mundo, não preenchi cupom, não fiz nada mesmo, nunca nem soube que haveria esse sorteio, custei muito a acreditar.
Vivemos aqui no Brasil numa sociedade em que a maioria não preza reservas de capital, lutando para equilibrar-se sob um consumo sempre tentado ao além, amarrada no endividamento crescente, juros bancários, créditos consignados e quejandos.
Não são poucas as iscas com o que o consumo tenta, sob os mais diversos conquanto manjados estratagemas lhe fisgar.
De repente te ligam querendo confirmação de dados porque tu foste sorteado para isso ou para aquilo e tal. Costumo repassar o contato para a minha mulher. A Eurídice é incrível no fino trato. Em circunstancias que tais, até que me esforço.
Quando a voz de moça me falou que eu havia sido sorteado e que procurasse o Banco do Brasil, recorri a um dos meus bordões, ouça moça, eu só cuido da produção, a minha mulher é quem cuida da gestão.
Não deu outra. Ligaram para a Eurídice, que de cara acreditou. Chegou em casa toda animada. Isso não pode ser verdade, é trote, fake-news, alguma picaretagem, disse eu. É sério, disse ela. Como ser verdade, se eu não assinei nada, não preenchi cupom nenhum e tal?
Aqueles momentos desfilavam lentamente na minha memória enquanto o ônibus em sua velocidade disciplinada parecendo até devorar lentamente os silêncios lá de fora, lentamente também parecia me inocular na memoria alguns sintomas de saudade.
No caminho da volta ninguém se perde. Falou José Américo, o Homem de Areia.
(Edson Vidigal, Advogado, foi Presidente do Superior Tribunal de Justiça e do Conselho da Justiça Federal)
Páginas
sexta-feira, 27 de julho de 2018
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Os comentários não representam a opinião deste blog. Os comentários anônimos não serão liberados. Envie sugestões e informações para: blogdoludwigalmeida@gmail.com