Retratos da vida insana no cárcere : ‘terapia’ tem choque, mas não remédio
SÃO LUÍS - Num buraco ao lado de uma criação de porcos, da tubulação de esgoto e do resto da comida servida na Casa de Detenção (Cadet), Cola na Cola passa as noites e cumpre sua pena. José Antônio dos Santos não admite mais ser chamado pelo nome, refuta pai e mãe, veste-se com roupas femininas e se considera mulher. Só atende pela alcunha Cola na Cola, uma expressão que ninguém sabe explicar de onde surgiu.
Esquecidos. Detentos da Casa de Detenção de São Luís (Cadet) |
— Fui eu que mandei fazer essa cadeia. E não estou preso. Fico aqui pelo chamado para acabar com a corrupção — diz ele.
O Estado nunca diagnosticou seu transtorno mental. Nos últimos dois anos, ele não aderiu a qualquer tratamento psiquiátrico, não tomou uma única medicação nem esteve numa consulta médica. O buraco onde mora está na entrada do presídio, na parte de dentro, onde ficam os porcos, as galinhas e o lixo.
No pátio de uma pequena igreja improvisada numa das celas da Cadet, o maior presídio de regime fechado de São Luís, um jovem de 24 anos estende um colchão para passar as noites. Paulo Ricardo Machado tem os olhos esbugalhados, frases aceleradas, uma postura impassível. Há dois meses, foi diagnosticado com esquizofrenia paranoide e dependência ao crack. A loucura de Paulo Ricardo explodiu na Cadet depois que um preso introduziu um cabo de vassoura no ânus do jovem. Para conter os surtos, técnicos de saúde da unidade pediram a aplicação de oito sessões de eletrochoque no rapaz. Eles dizem ter sido atendidos.
Num cubículo de cela, sem nada, Francisco Carvalhal, 50 anos, tenta domar a agressividade. Ele já foi absolvido uma vez pela Justiça, em razão de a esquizofrenia paranoide ter impedido a compreensão de um ato ilícito. O juiz determinou que Francisco fosse internado no Hospital Psiquiátrico Nina Rodrigues, o único existente na rede pública em São Luís, para o cumprimento de uma medida de segurança. O hospital rejeitou o paciente. Dias depois, sem medicação e em surto, ele matou a mãe. Para escapar de um linchamento, foi levado para o Centro de Detenção Provisória (CDP) Olho D'Água, onde permanece há dois meses.
800 absolvidos ainda detidos
Cola na Cola, Paulo Ricardo e Francisco somam-se a outros presos portadores de doença mental que vivem à margem das estatísticas oficiais e da lei. Na teoria, a existência do transtorno mental e a consequente aplicação de uma medida de segurança a partir da absolvição pelo juiz impedem a permanência de loucos infratores nos presídios.
Levantamento inédito do GLOBO revela a extensão do universo de loucos nos presídios brasileiros — um grupo cuja existência parte da sociedade brasileira prefere ignorar. Pelo menos 800 pessoas absolvidas pela Justiça em razão de transtornos mentais e em cumprimento de medida de segurança estão detidas em presídios e cadeias públicas país afora.
A medida tem um prazo mínimo de um a três anos, é determinada pelo juiz responsável pelo processo — logo após a absolvição do acusado — e deve ser cumprida em hospitais de custódia, clínicas ou ambulatórios. Essas pessoas são consideradas inimputáveis ou semi-imputáveis, uma vez que a manifestação dos problemas psiquiátricos impediu a compreensão dos crimes, e deveriam estar em tratamento médico. Na prática, cumprem pena no cárcere.
A quantidade pode ser até três vezes maior: outros 1,7 mil brasileiros acusados de diferentes crimes já receberam indicação da Justiça de que podem ter transtornos mentais e aguardam, além de um laudo psiquiátrico, tratamento médico dentro de presídios, em casa ou nas ruas. Em alguns estados, como São Paulo, a espera numa fila dura mais de um ano. Em outros, o laudo nunca é elaborado.
O levantamento do GLOBO foi feito junto às secretarias de administração penitenciária, defensorias públicas e varas de execução penal nos estados, além de consultas a fontes nos Ministérios da Saúde e da Justiça. O Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (Infopen), alimentado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, registra a existência de 3,9 mil pessoas em cumprimento de medida de segurança, seja em internação ou em tratamento ambulatorial. Os doentes mentais nos presídios identificados pelo jornal não entram na conta.
Os números oficiais tratam dos 26 manicômios judiciários e alas de tratamento psiquiátrico — anexadas a presídios — ainda em funcionamento em 20 unidades da federação. Cabe a esses hospitais de custódia receber os loucos infratores submetidos a medidas de segurança de internação. O Infopen ignora as pessoas que cumprem a medida em prisões e até mesmo os inscritos em dois programas em Goiás e Minas Gerais que pregam a desinternação, como preconiza a Lei Antimanicomial de 2001. Somados os três universos — manicômios, presídios e programas de desinternação —, a quantidade de loucos infratores é de 8,1 mil, mais do que o dobro do que consta no Infopen.
— A situação mais grave envolvendo medidas de segurança é a dos detidos em presídios. A responsabilidade pela integridade física do preso é do Executivo e, pelo andamento do processo, da Justiça. A Lei de Tortura prevê responsabilização por ação e omissão. Não há qualquer justificativa para as prisões — afirma o juiz Luciano Losekann, auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário.
Para a produção de uma série de reportagens sobre o assunto, O GLOBO esteve em sete presídios, uma ala de tratamento psiquiátrico e um manicômio judiciário em São Luís, Teresina, Goiânia e Brasília. Nas três primeiras cidades, a equipe conseguiu entrar nas unidades prisionais na companhia de juízes e de um promotor de Justiça. Em Brasília, uma autorização judicial permitiu ter acesso às prisões.
A reportagem flagrou uma realidade de uso contumaz do crack, hipermedicação e inexistência de prontuários em Brasília; a existência de uma ala específica para presos com transtornos mentais num presídio de regime fechado em Goiânia, além de pessoas em cumprimento de medida de segurança misturadas com detentos comuns; e doentes mentais nos mesmos espaços de pacientes com hanseníase e aids no manicômio em Teresina. Em São Luís, pessoas com transtornos mentais estão presas sem qualquer perspectiva de decretação da medida de segurança. Não há laudos, exames ou psiquiatra: a única que atendia no complexo prisional deixou de ir ao trabalho porque está sem pagamento desde dezembro. Um rol de irregularidades que combinam com o “sistema medieval” descrito pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, no final do ano passado.
Segurança não garante tratamento
Pelo menos 25 pessoas cumprem medida de segurança nos presídios em São Luís. Não é o caso de Cola na Cola, o detento que vive num buraco na Cadet há três anos. Condenado a 19 anos de prisão pela suposta prática de dois estupros, é a terceira vez que ele passa pelo presídio. Mesmo com um evidente quadro de loucura, nunca houve um exame de insanidade mental.
A medida de segurança não garante tratamento psiquiátrico. Francisco Carvalhal, absolvido num processo por homicídio em razão da esquizofrenia, deveria permanecer internado “pelo tempo necessário à sua recuperação”, como decidiu a Justiça em São Luís. O Hospital Nina Rodrigues deu alta a ele mesmo com a “falta de clareza” sobre a possibilidade de convívio imediato. No mesmo mês, Francisco matou a mãe. Ela relatava desde 2001 ameaças e pedia a internação do filho.
Após a reportagem do GLOBO flagrar as três situações no Maranhão, a Defensoria Pública pediu aplicação de medida de segurança a Cola na Cola e a Paulo Ricardo, e o juiz Douglas de Melo Martins decidiu reencaminhar Francisco ao Hospital Nina Rodrigues. A Secretaria da Administração Penitenciária do estado não respondeu aos questionamentos da reportagem.
(A matéria é capa do jornal O Globo de hoje)
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